Vivian Berto de Castro e Patricia Sant'Anna
Inteligência artificial é pauta celebrizada na tecnologia atualmente: carros autônomos, robôs domésticos, mídias sociais que “aprendem” a partir da base de dados dos usuários, sistemas de vigilância com reconhecimento facial. As perspectivas são tanto de euforia quanto de medo de uma possível “dominação” do mundo das máquinas, e o discurso é bastante fomentado pela mídia e gera bastante interesse. Não há dúvida de que a forma como lidamos com a ideia de inteligência artificial tem a ver com a sensibilização que temos com os mais variados discursos sobre o tema.
Na ficção científica atual, o cenário é de distopia. Um dos últimos filmes da plataforma Netflix sobre o tema, I am Mother (2019) fala sobre um robô com voz feminina - a Mãe - que, num futuro quase sem humanos, decide criar uma menina entre quatro paredes; o mundo lá fora é desolado e aterrador. A Mãe é essa figura maternal e carinhosa, mas ao mesmo tempo mantém certa rigidez. Uma visitante inesperada, a Mulher, balança o equilíbrio desse sistema e tenta convencer a Filha de que a realidade exterior é muito diferente e os robôs não são dignos de confiança. Entra em cena o questionamento de Filha sobre a amada mãe e máquina que a criou a vida inteira. Outro filme que ainda está no nosso imaginário é Ex Machina (2014), no qual a máquina (também uma figura feminina), mata de seu criador e opressor e, não sem deixar o protagonista para morrer, parte para a liberdade entre os humanos. A imagem de Alicia Vikander, aparentemente frágil e submissa, é a máquina que quer autonomia - e se vinga.
Não podemos esquecer também a literature clássica sobre ficção científica, como Eu, Robô (1950), de Isaac Azimov – que também originou um filme bem popular – e a violência das máquinas de filmes de ficção científica como Matrix (1999) – o mundo dominado pelas máquinas, que sufoca as revoluções dos humanos – e Exterminador do Futuro (1984). E, por fim, o vingativo HALL 9000, de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).
Mercado de trabalho e robôs.
No quesito mercado de trabalho, não é de hoje que a inteligência artificial é apontada como uma espécie de vilã. A chamada Indústria 4.0, uma nova etapa do desenvolvimento tecnológico que oferece mais autonomia às máquinas e aposta no machine learning, já é uma realidade em alguns setores, como o automobilístico e o agronegócio. Normalmente, a questão se coloca como de classe, pois os empregos que podem ser substituídos são os considerados repetitivos e de pouco empreendimento “intelectual”.
Mas a perspectiva é que novas profissões sejam substituídas - saem listas e mais listas de profissionais que não serão mais necessários no futuro próximo. Segundo Victor Young, professor de economia da PUC-Campinas, as profissões que poderão ser substituídas poderão ser algumas que “contemplam rotinas de maior complexidade, como por exemplo, telemarketing, medicina diagnóstica, rotinas de enfermagem, contabilidade, serviços de entrega e transporte, que estagnarão a princípio, tendendo a uma progressiva diminuição. Há também a perspectiva de que outras, como por exemplo, consultoria econômica, atendimento médico geral, assessoria jurídica também passem a competir com sistemas de inteligência artificial"
Enquanto alguns setores (como o de telemarketing) já veem aceleradamente a substituição de seus empregos e outros, como o diagnóstico médico e a enfermagem, ainda têm debates acerca de substituir profissionais por inteligência artificial, seria a indústria da moda impactada pela inteligência artificial e pelos robôs?
Sistema produtivo de moda.
A “linha de produção” de uma confecção de vestuário possui especificidades que a afasta completamente de outras indústrias. Esta é uma das poucas indústrias que ainda utiliza o modo de produção taylorista, ou seja, com as peças passando de uma profissional (costureira) para a outra, com pouquíssima automatização.
Tentativas de trazer os robôs para a confecção já existem. Desde 2017, a Adidas possui uma máquina que corta e costura camisetas da marca em Arkansas, nos EUA. O Sewbot (uma parceria da americana SoftWear Automation e da chinesa Tianyuan Garments Company) corta, costura e finaliza uma peça em quatro minutos. Mas é importante destacar que, por mais interessante que seja um robô que realiza todas essas tarefas, se tratam de camisetas (apenas dos tamanhos P, M e G), peças extremamente simplificadas. Como seria fazer peças de vestuário mais complexas, com inúmeras operações, além de modelagem e gradação específicas para cada modelo? Como iremos esclarecer mais adiante, a aprendizagem da inteligência artificial é mais lenta e limitada do que gostariam os mais entusiastas da tecnologia.
Além disso, em países em desenvolvimento, o grande contingente de pequenas e microempresas que trabalham para o setor confeccionista, sem falar nas costureiras que trabalham autônomas, sob demanda, em suas próprias casas ou em cooperativas, faz os discursos entusiastas da Indústria 4.0 parecerem história de ficção científica. As barreiras de entrada são muito baixas no setor, justamente porque ele não precisa de grandes avanços tecnológicos.
Se trata de uma indústria que se apoia na pobreza, no trabalho feminino, na informalidade, tudo isso porque a confecção precisa das mãos habilidosas das profissionais centradas em sua função. Esses imensos contingentes de mão de obra barata, com pouco ou nada de direitos trabalhistas, ainda suprem a indústria da moda e mantém os custos baixos para os grandes varejistas, diminuindo a necessidade (considerando o custo) de trocar humanos por robôs.
Os robôs no design de moda.
Já existem empresas que apostam na experimentação da inteligência artificial não no processo de corte e confecção, mas no próprio design de moda. Um exemplo é a Glitch (https://glitch-ai.com/, empresa criada por dois estudantes do MIT – Massachusetts Institute of Technology – que cria produtos de moda exclusivamente com inteligência artificial. A marca, que se intitula a primeira a criar modelos com IA, já vende algumas peças via e-commerce.
A marca Glitch cria produtos de moda a partir da inteligência artificial. É mais uma experiência, mas já mostra resultados interessantes.
A empresa nasceu de um curso do próprio MIT intitulado How to Generate (Almost) Anything with AI. Nele, os estudantes interessados em IA podem experimentar criar (ou “gerar”?) coisas a partir da inteligência artificial, de criação de música a montar pizzas. No projeto de moda, os alunos utilizaram um sistema de aprendizagem chamado GAN (generative adversarial network), que possibilita que a máquina gere coisas novas a partir das estatísticas que lhe foram mostradas. Por exemplo, uma máquina pode gerar uma fotografia aparentemente “realista” - mas totalmente inventada pela inteligência artificial - se ela tiver contato com inúmeras outras fotografias tiradas por seres humanos.
Para o projeto, os estudantes utilizaram um banco de dados de modelagem de roupas vintage, chamado Vintage Patterns, que possui páginas de revistas antigas de costura escaneadas pelos usuários. Após coletar cerca de 5 mil imagens e de “treinar” a inteligência artificial por alguns dias, os estudantes conseguiram que a máquina gerasse novos desenhos a partir dos primeiros apresentados. Os erros (não poucos) foram assumidos com perspectiva criativa e divertida. Por exemplo, textos que estavam acima das ilustrações de moda foram entendidos pela inteligência artificial como imensos chapéus. Alguns vestidos ganharam mangas radicalmente diferentes uma da outra, e a pintura luz-e-sombra das ilustrações foi entendida como tecidos em cores em degradê ou ombré. Para cortar a peça e fazer efetivamente o vestido, não houve outra solução além das tradicionais tesoura e máquina de costura (!). Dois dos looks mais curiosos foram reproduzidos pelos alunos. A explicação completa do projeto está na página do Medium do curso.
A proposta da marca Glitch parece bem parecida com o experimento dos estudantes: fazer a inteligência artificial criar vestidos vendáveis. Não se pode falar que as peças já realizadas tenham muito apelo de design. Mesmo com a tecnologia aperfeiçoada, a inteligência artificial só poderá criar a partir de peças existentes, no máximo recombinando-as em outras propostas.
Outra marca recente a trabalhar com a IA é a Spirit and Glitch, focada em estamparia. Ela cria estampas multicoloridas a partir de imagens de redes neurais para ser impressa (via impressão digital) em malha. Leggings têm sido o produto mais comercializado.
Note que a ideia de “erro” gerado pela máquina parece interessante em ambas as marcas - a Glitch e a Spirit and Glitch. Quase como as brincadeiras que fazemos com a função “auto-completar” dos teclados do celular para gerar frases com palavras que semanticamente combinam entre si, mas que não formam significado algum. Jogar com as possibilidades da eficiente, porém, ingênua inteligência artificial, pode ser uma das possibilidades de design.
Designers gostam de novidades, especialmente as tecnológicas. Novas tecnologias normalmente chamam a sua atenção, e eles tendem a entender sua função como um vetor que direciona as aplicações das novas tecnologias. Mas o que acontece se a própria profissão do designer puder ser substituída pela inteligência artificial? Essa ideia não tinha sido apontada ainda.
A ideia de que robôs podem substituir designers (que costumam ser "novidadeiros" em relação a novas tecnologias) ainda não havia sido discutida.
Até onde os robôs podem ir.
Mas o que configura, realmente, a inteligência artificial? Quais são suas possibilidades técnicas hoje e no futuro (daqui, digamos, 50 anos)? Para Meredith Broussard, pesquisadora e professora da New York University, não podemos esperar nada semelhante ao que nos mostra a ficção científica.
Em Artificial Unintelligence - How computers misunderstand the world, publicado pela MIT Press no ano passado, Broussard explica por que a realidade da inteligência artificial, e mesmo sua expectativa de futuro, não corresponde ao imaginário.
De acordo com a autora, os computadores são programados para executar certo número de ordens via variáveis matemáticas. Ela diz que os termos “inteligência artificial” e “machine learning” são mal compreendidos. Os computadores não “aprendem” porque adquirem capacidades cognitivas ou adquirem sentimentos. Eles apenas recebem uma grande quantidade de dados e os utilizam de maneira estatística. Um robô que ganha uma partida de xadrez possui uma base de dados de milhões de movimentos do jogo e os ativa conforme a situação. Se algum movimento imprescindível para a jogada não estiver nessa base de dados, ele não o executará. Este mesmo computador não conseguirá utilizar esse “conhecimento” para mais nada, além das partidas de xadrez.
Os computadores não “aprendem” porque adquirem capacidades cognitivas ou adquirem sentimentos. Eles apenas recebem uma grande quantidade de dados e os utilizam de maneira estatística.
A inteligência artificial tem uma propriedade que a torna valiosa e, por isso, tem sido tão explorada: ela se torna extremamente eficiente para executar uma determinada tarefa específica, se alimentada e “treinada” com a base de dados certa (treinar significa simplesmente um humano apontar para a máquina quando um exemplo de quando o resultado está correto). É por isso que, segundo ainda Broussard, os projetos de carros autônomos são tão complexos. Dirigir não é uma tarefa só, mas uma combinação complexa de inúmeras tarefas e atenção constante. Um computador ricamente alimentado com dados e muito eficiente não irá identificar uma placa de trânsito torta, uma faixa de pedestres apagada ou um cone de trânsito derrubado, porque não consegue expandir seu conhecimento além do que lhe foi colocado.
Por mais que avance, a inteligência artificial não consegue entender ou avaliar contextos. Ética ou crítica estão fora de questão, mesmo para as máquinas mais treinadas. Dominação do mundo, como aponta a ficção científica distópica? Se isso acontecer, é só tirar a máquina da tomada, brinca Broussard no livro, evocando uma piada constante entre profissionais e pesquisadores da área.
Poderia o designer de moda ser substituído pela inteligência artificial?
A resposta, tendo em vista as limitações da máquina, fica mais clara. Com uma boa e completa base de dados, muito “treinamento” da máquina e trabalho das equipes de pesquisadores, uma máquina poderia, em pouco tempo, criar novos desenhos (tanto no design quanto na modelagem) e substituir o profissional. Com um trabalho preciso de máquinas, poderíamos até arriscar que seria mais eficiente, e os erros humanos comuns poderiam ser evitados.
As ferramentas automatizadas, como os sistemas CAD de encaixe, por exemplo, poderiam se beneficiar da inteligência artificial para se tornarem mais eficientes. Imagine um sistema que “aprende” com a base de dados com os erros que foram cometidos (por máquinas ou por humanos), evitando-os no futuro.
Uma das promessas comuns da IA é que ela vai diminuir muito da carga de trabalho atual, ficando com as tarefas mais automatizadas e deixando as pessoas livres para tomar as decisões mais estratégicas. Nós também vamos defender certo ceticismo nessa ideia, uma vez que a promessa desde o início do século XX é que as máquinas poupariam o trabalho dos seres humanos (é de John Kaynes a previsão, dita em 1930, que ao final do século as pessoas estariam trabalhando 15 horas por semana). Mais automatização não significa, necessariamente, menos trabalho para nós, humanos.
Mais automatização não significa menos trabalho para nós, humanos.
Além de pensar se o designer pode ser substituído pela máquina, podemos fazer a reflexão: no que se configura a tarefa do designer? Se observação de contexto, pensamento crítico e ética são importantes, isso significa que um robô não pode se tornar um designer. E é claro que são. Agora, se o designer for apenas uma pessoa que “combina” imagens e referências, agindo de forma automatizada, sem pensamento crítico e fazendo sempre mais do mesmo… ele mesmo já se tornou uma máquina, não?
Leia também.
“Meu robô, minhas regras”, reportagem de Jacqueline Lafloufa na revista Galileu deste mês.
“Controlling machine-learning algorithms and their biases”, Tobias Baer e Vishnu Kamalnath no Our Insights / McKinsey and Company
Joy Buolamwini, que combate o viés racista da inteligência artificial. https://www.poetofcode.com/
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