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Choque de realidade: a moda como ela é

Equipe Tendere


O que significa, exatamente, trabalhar com moda? Primeiro de tudo, é trabalhar, e muito. É estudar e pesquisar continuamente. Caso se procure glamour ou holofotes, é melhor buscar outro campo de atuação. Há muitos estudantes que entram nos cursos de moda com uma ideia equivocada sobre esse campo profissional. Esse post não é para defender os defeitos do universo da moda, até porque nós, assim como você, denunciamos as péssimas condições de trabalho que ocorrem desde o chão de fábrica até as agências de comunicação especializadas em moda. Porém, queremos mostrar que muito desse olhar equivocado sobre a moda gera frustração em pessoas que desejam do universo da moda algo que jamais ela dará, nem aqui no Brasil, nem em qualquer outro país do mundo. Trabalhar com moda é jardim de rosas... lindas flores, bastante espinho, delicioso perfume, delicada sobrevivência.

Primeiro, moda não é expressão artística. Ser um criador em moda não é ser um criador no sentido das artes, mas sim no sentido do design. As restrições existem (custos, público-alvo, tendências, às vezes até o gosto pessoal do dono da marca ou do seu chefe direto) e a criatividade é como você trabalha dentro dessas restrições para criar o melhor produto. A moda quando "crescer" não vai virar arte. Ela é linguagem estética, da estética cotidiana tão bem delineada por Charles Baudelaire em Sobre a Modernidade (sim, você precisa ler!), madura o suficiente para se expressar por seus próprios meios.


Ser um criador em moda não é ser um criador no sentido das artes, mas sim no sentido do design. Há muita fantasia em torno de trabalhar com moda de que é fazer um tipo de criação em que há uma grande liberdade de expressão. Primeira grande ilusão a ser quebrada. A criação de moda é para o outro, e este outro é um cliente. Criadores como Karl Lagerfeld nunca criam para si próprios, criam para alguém, um público, no caso consumidores da maison Chanel ou da marca Chanel. O chamado kaiser da moda já chegou a dizer numa entrevista que, antes de desenvolver qualquer coleção, ele se reúne com o departamento financeiro da empresa. Precisa saber o que vendeu, quando e quanto vendeu, em que local vendeu mais, e é a partir dessa informação estratégica de mercado é que ele cria sua próxima coleção. Não à toa que é um dos designers com insights mais inteligentes da atualidade, do desfile em Dubai até a passarela no supermercado.


Se seu objetivo é ser criador no sentido de liberdade de expressão, há espaço, mas saiba, é em ateliê e ele demanda dedicação e tempo e dinheiro para investir durante um bom tempo para conseguir viver sem depender desse negócio. Neste ponto há um diálogo com o mundo das artes, pois este é um universo difícil e muito competitivo, e que, além de criatividade, é necessário perseverança, coragem e muito, mas muito trabalho duro. Deve-se logo de cara desmistificar a ideia de artista como alguém que tem insights sem estudo, ou com 'sorte', e é, como uma gata borralheira, alçado ao Olimpo dos deuses da arte, porque uma fada madrinha o encoraja. Bom dia, Alice! O mundo não é assim! Seja realista, fazer moda-ateliê, como fazer arte, é trabalhar, estudar, e lutar bravamente todos os dias.

Ainda há espaço aqui para confundir o que é exatamente criatividade. Quantos alunos chegam às salas de aula pensando que saber desenhar, criar croquis incríveis, ser um gênio da moulage experimental é ser criativo! Criatividade é buscar soluções inovadoras dentro das restrições. Uma pequena alteração na modelagem que deixa o caimento da calça ainda mais perfeito? Uma proposta que troca o tecido no design e que diminui consideravelmente os custos? Alterações na gestão do estoque que agilizam o processo? E que tal uma campanha bem direcionada nas mídias sociais que conquistam novos clientes? Engraçado que ninguém destaca o modelista, a piloteira, o estoquista, o departamento de marketing ou de gestão como criativos. Descordamos disso veementemente. Uma empresa criativa tem no seu modelo de negócio soluções inovadoras. Portanto, isso não é privilégio do estilista ou do designer de moda: todos os profissionais, da criação ao varejo de moda, passando pela indústria e comunicação de moda, diariamente necessitam ser criativos.


Ser criativo não é privilégio do estilista ou do designer de moda.

Na moda, aliás, cada vez menos existe a ideia do estilista e cada vez mais, a do designer. Neste post aqui sobre a profissão nós explicamos a diferença.


Acho que não precisamos nem falar do glamour. Pensar em São Paulo Fashion Week como representativo da moda do nosso país é demonstrar certo deslumbre com um evento de moda, demonstrando total desconhecimento sobre toda engrenagem que realmente gera empregos e riqueza. O mundo de marcas, indústrias, comunicadores, profissionais das mais variadas formações (dos engenheiros têxteis e de produção aos gestores de empresas de moda, passando, lógico, pelos designers de moda) pouco ou quase nada dependem do SPFW. Como já dissemos aqui, esse evento representa apenas uma parcela pequena de todo mercado da moda brasileiro, do luxo à classe D e E, da moda bebê à moda para pessoas com deficiência, há muito mais do que essa passarela paulistana no imenso mercado de moda nacional.

Moda é glamour também, mas, sobretudo, para o cliente final. Pois é que quem compra aquele sonho que acompanha o produto, que compõem junto a muitos outros valores aquilo que é imaterial do produto de moda. O produto de moda possui uma carga simbólica muito grande e nela há espaço para o glamour. Portanto, o ele é muito mais do que um pedaço de tecido para cobrir o corpo. É para o cliente final que falamos em “nude” e “midi”, quando na prática chamamos de cor de pele, bege e longuete. Se o glamour foi o que lhe levou a querer atuar em moda, saiba que ele não é o cotidiano deste universo, e quem alimenta isso, alimenta monstros que não sabem lidar com a realidade. Costumamos dizer na Tendere que não há nada mais estranho do que um profissional (ou empresas) de moda que é (são) vítima(s) da moda. Significa, tristemente, que não entendeu(ram) nada sobre o setor em que atua(m).


Moda é glamour? Sim, mas, sobretudo, para o cliente final. Na prática, nós falamos cor de pele ao invés de "nude", longuete no lugar de "saia midi".


Se a moda é glamour para o consumidor final, o preço final tem pouco a ver com o tal 'pedaço de tecido' ou couro ou seja lá o material que esteja sendo usado. Aliás, isso não é exclusividade da moda: praticamente todas as indústrias trabalham com o preço percebido pelo consumidor e não com a fórmula simples de custo + lucro. Com a moda – e outros setores, da gastronomia ao automobilístico, seguem a mesma lógica – outras coisas vêm agregadas no produto. A imagem da marca é a primeira delas, construída cuidadosamente através de campanhas publicitárias, eventos, ações em mídias digitais, promoções dentre tantas outras ações. Atire a primeira pedra quem nunca comprou roupa ou acessório pensando na imagem que essa marca tem.

Depois, vem a experiência de compra. Também não é exclusividade da moda, mas uma experiência de compra, alinhada à imagem da marca, pode se tornar essencial para a decisão do consumidor. Uma peça que não vale tanto, sendo vendida numa superloja com ar condicionado, cafezinho, champanhe e atendimento VIP ganha o valor de tudo isso embutido. Resumindo, vamos parar de pensar moda enquanto produto final quando formos pensar em seu preço. E que existe, afinal, um “preço justo” – existe o preço que o consumidor está disposto a pagar. Na moda e em quase todos os mercados, afinal, esta é a lógica capitalista.

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