Vivian Berto de Castro e
Fernanda Schenferd
Afropunk é um festival de música que começou no Brooklyn em 2005, idealizado por James Spooner e Matthew Morgan. A ideia original do evento era criar uma comunidade entre pessoas negras dentro de uma noção de “subcultura punk” - predominantemente branca - e trazer artistas negros alternativos fora do mainstream. Era uma resposta a uma visualidade que “não existia”, segundo seus organizadores.
Crescendo vertiginosamente desde então, o Afropunk foi mostrando a imensa diversidade da cultura negra (em especial, dos jovens) e seus códigos estéticos. Ajudou a propagar o termo “afropunk” entre jovens negros que possuem estética ousada, muitas vezes associada a um imaginário de um passado africano ou afrofuturista, e muitas vezes conectado também à cultura queer. O afropunk chegou a se tornar tendência de estilo e comportamento, sendo adotada amplamente pouco tempo depois que o festival se concretizou.
O festival Afropunk deste ano, realizado no Brooklyn, recebeu pela primeira vez uma grande atração brasileira, a festa/manifesto baiana Batekoo. Em 2020, a previsão é de que o Afropunk venha para Salvador. A perspectiva de um grande evento internacional de cultura negra na capital baiana parece fazer parte de um movimento que coloca o Brasil como central na perspectiva diaspórica da África e une a cultura negra, em especial das Américas. Mostra também o interesse cada vez maior em expandir o conhecimento da diversidade da cultura negra que tem um ponto de partida em comum, que é o remeter ao passado do povo africano - à medida em que a história da África é reformulada, apontando uma nova maneira (mais atenta, menos condescendente e eurocêntrica) de olhar o continente. O interesse crescente por manifestações da cultura negra ligada ao universo jovem, como o funk, torna o intercâmbio mais intenso. A cantora e compositora MC Carol, por exemplo, palestrou e recitou na Brown University (uma das grandes universidades norte-americanas) em abril deste ano, além de realizar sua primeira turnê na Europa. 2019 também foi o ano da curitibana Karol Conká no continente.
Autoria, consumo e dinheiro
Embora os festivais de cultura negra estejam longe de ser novidade, é claro, hoje podemos pensa-la dentro de um fenômeno que ficou conhecido como afroconsumo. Nos EUA, é chamado também de black money: é quando pessoas negras consomem produtos e serviços de empresas de outras pessoas negras. Ou seja, nas palavras da empreendedora e visionária Adriana Barbosa, da Feira Preta, isto tem a ver com manter o dinheiro circulando dentro deste grupo, e não se esvair na mão de brancos, tradicionais retentores do dinheiro. A questão racial está estreitamente relacionada à social e econômica, pois, no Brasil, assim como nas Américas em geral, pessoas negras estão nas camadas mais pobres e mais precarizada da população. Afroconsumo é um consumo politizado que leva em consideração criar comunidades, crescer em conjunto, criar alternativas, dentro do contexto do capitalismo, de enriquecimento de um grupo.
Ao mesmo tempo, não é só o dinheiro que conta, porque a questão da identidade também se projeta: no geral, muitos empresários que pensam o afroconsumo pensam as empresas como benefícios e oportunidades voltado para a população negra. O Diaspora.black, por exemplo, é um serviço que conecta proprietários e hóspedes para alugar quartos, casas e apartamentos, como um alternativa ao Airbnb. O motivo é o racismo estrutural presente entre usuários da plataforma, muitos deles brancos. Criar um ambiente confortável, comunitário e livre do racismo para seus usuários irem e virem é o objetivo do Diaspora.black.
Ontem, na New York Fashion Week, a SavagexFenty apresentou seu primeiro grande desfile – a marca de lingerie faz parte do grupo Fenty, de Rihanna, grande sucesso já nas linhas de maquiagem e streetwear. O desfile era fechado para o público e será transmitido em parceria com o serviço de streaming da Amazon, mas algumas fotos de divulgação já mostraram o que tem de mais interessante (e vendável) na SavagexFenty: celebração do corpo das mulheres negras, assim como sua diversidade, e a centralidade da formação de gosto dessas mulheres como norte do estilo da marca.
Afroconsumo
Muito do que conhecemos do afroconsumo no Brasil pode ser creditado a Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta. A empreendedora entendeu, a partir de suas experiências com participação de feiras de produtos de moda e acessórios em alguns lugares não-periféricos de São Paulo (como a Vila Madalena) que, embora muitos dos compradores fossem negros, no fim do dia quem lucrava com o resultado das feiras eram os seus organizadores, brancos. A ideia de criar a Feira Preta era que ela reunisse empreendedores negros para manter o dinheiro circulando entre eles.
A população negra corresponde a 54% do País, e faz girar cerca de R$ 1,7 trilhões na economia. Negras e negros representam mais de 50% dos empreendedores no Brasil, segundo pesquisa do Sebrae com dados da PNAD 2014, mas, segundo a mesma pesquisa, os negros têm o crédito negado 3 vezes mais que os brancos nas instituições financeiras.
O crescimento da classe média no Brasil, nos últimos vinte anos, tem representado também um crescimento da comunidade negra como pertencente a essa classe. Os números expressivos do mercado consumidor composto por pessoas negras nos mostra isso. Essa classe média vem com exigências de consumo e desejos que se associam a raça e identidade, como é o exemplo do movimento cultural e de moda do afropunk. É preciso ressaltar que falar dos termos black money ou afroconsumo hoje não quer dizer que tais práticas de escolha de consumo ainda não existiam. O que vemos é ele muito associado às tendências de consumo cada vez mais politizado e identitários. Lidera os debates contemporâneos e globalizados, se conectando com outras tendências de consumo politicamente ativo - consumir é, especialmente para a geração Z, um posicionamento.
Design e identidade
Enquanto a cultura negra diversa se torna cada vez mais desejável, mesmo para quem não é negro, seus códigos estéticos são também apropriados em outros contextos. Chegam a criar um curioso fenômeno, chamado de maneira geral de blackfishing, quando pessoas fingem ser negras - escurecem o tom da pele, copiam os cabelos crespos ou trançados e maquiagem, adotam gestos e sotaques, dentre outros.
A imitação dos códigos estéticos da cultura negra já foi objeto de estudo de Angela Davis em um clássico ensaio para a revista acadêmica Critical Inquiry, da Universidade de Chicago. Em “Afro Images: Politics, Fashion and Nostalgia”, Davis critica o uso indiscriminado de imagens fortes da cultura e da história afroamericanas como simples objeto de consumo dentro da moda e da publicidade, simplesmente por seu fator desejável ou “fashionable”.
Atualmente, as críticas de Davis podem ser mantidas, mas deslocando o local de imagens tradicionais também para o consumo - mas para o consumo e lucro das próprias pessoas negras. É o que faz com maestria Beyoncé com boa parte de sua produção - com destaque seu documentário-show, “Homecoming” - fazendo girar o consumo cultura de códigos negros para gerar dinheiro dentro das pessoas negras. Ou as pessoas por trás do sucesso do blockbuster “Pantera Negra”. Qualquer pessoa branca que lucrasse com esses códigos será hoje, acusada de apropriação cultural.
O lançamento recente da série Sintonia, na Netflix, é outro exemplo recente bastante interessante. A série, que se passa na periferia de São Paulo, é produzida por Kondzilla, conhecido produtor e diretor de funk da cidade, que popularizou o chamado “funk ostentação” e hoje tem o canal do YouTube mais popular do Brasil, e um dos maiores do mundo. Sintonia chamou atenção de boa parte do público por ser uma série feita de dentro da periferia, para a periferia - o que não está necessariamente associado a uma questão de raça, mas, quase sempre, sim. A representação das periferias nas séries, novelas e no cinema nacional sempre esteve presente, mas a maneira estereotipada como é normalmente tratada mostra tanto o pouco caso ao tratar do tema quanto a falta de pessoas que venham das próprias periferias para assinar, dirigir produzir, atuar, enfim, coordenar aquele produto audiovisual. A favela nestes casos torna-se um produto passivo a ser representado por pessoas de fora da periferia para pessoas de fora da periferia.
Com o afroconsumo, dificilmente as versões estereotipadas continuarão sendo aceitas. O fato de a série Sintonia ser distribuída por uma plataforma global como a Netflix mostra ainda o quanto o afroconsumo é estratégico, assumindo alianças que levam à popularização e venda de seus produtos. O interesse não é manter o produto apenas dentro da periferia, mas sim, vende-lo para o mundo inteiro e reverter o dinheiro para seu local de origem.
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